DE OLHOS BEM FECHADOS


Um mundo tenso e dividido entre as fantasias privadas e a realidade da rotina conjugal, entre o mundo brega das decorações natalinas e de pessoas carentes tagarelando incessantemente e o mundo do silêncio e imobilidade de uma poderosa e secreta elite. Esse foi o legado e síntese da visão de mundo de Stanley Kubrick no seu último filme “De Olhos Bem Fechados”, o mais esperado e controverso filme da década de 1990. 
Meticulosamente filmado (a maioria das cenas exigiram inumeráveis takes fazendo o filme entrar no Guinness World Records como a mais longa produção cinematográfica) a adaptação do livro “Dream Story” de Arthur Schnitzler resultou em uma complexa narrativa onde Kubrick compôs cuidadosamente cada plano com vários símbolos, alusões e paradoxos: da “Wonderland” de Lewis Carroll a magia ocultista de Aleister Crowley.


O filme mais antecipado e esperado da década de 1990 acabou se tornando uma das produções cinematográficas mais controversas. De Olhos Bem Fechados de Stanley Kubrick na época acabou dividindo radicalmente a crítica: um filme intelectualmente hiperestimado ou, por outro lado, um desastre. Em 1999 o público e crítica aguardavam um filme sobre sexo e cenas tórridas com o casal queridinho de Hollywood da época, Nicole Kidman e Tom Cruise. E o que Kubrick entregou foi basicamente uma narrativa sobre a interdição do prazer erótico, sonhos não realizados, sexo frio e ritualizado e um final anticlímax.



Quinze anos depois, parece que a melhor compreensão do filme acabou não nas linhas das colunas dos críticos de cinema, mas nas fabulações dos teóricos da conspiração que encontraram no filme de Kubrick uma vertiginosa recorrência de símbolos propositalmente colocados pelo diretor. Somados à vida reclusa e sua morte quatro dias depois da edição final do filme ter sido mostrada para os executivos da Warner, lendas sobre o preço fatal que Kubrick teria pago por expor uma suposta conspiração Illuminati das elites acabaram ganhando força ao longo dos anos.


Se Kubrick pagou com sua própria vida por não ter ficado, afinal, com os olhos tão fechados para a conspiração que o envolvia, é tudo muito controverso e subjetivo como todas as teorias conspiratórias. Porém, o perfeccionismo de Kubrick com a recorrência de simbolismos ocultistas e esotéricos no filme é um fato que não dá para negar e que acabou transformando De Olhos Bem Fechados em uma obra-prima: temas, símbolos, alusões, paradoxos – espelhos, arco-íris, olhares, máscaras, orgias ritualísticas, iluminação natalina, os nomes dos protagonistas (Bill e Alice) como alusões tanto à nota de dólar quanto ao conto de Lewis Carroll Alice no País das Maravilhas e Através do Espelho etc.

A cena inicial

De Olhos Bem Fechados apresenta dois níveis de diferentes discursos: a realidade externa, a dimensão social representada por Victor Ziegler (membro-chave da poderosa elite nova iorquina e anfitrião de Bill para a entrada nessa sociedade fechada) e a realidade interior, a psicodinâmica tensão representada pelo personagem Alice (Nicole Kidman).



A cena inicial do filme (depois de um rápido plano de Alice se desnudando diante de um espelho, a tela torna-se preta, como se um olho tivesse reflexivamente fechado as pálpebras sugerindo o voyeurismo de um peep-show) simbolicamente já apresenta essa tensão que dominará a narrativa: o prazer erótico será sempre interditado, impedido pela dimensão social (a rotina do casamento, a AIDS, os papéis sociais e do matrimônio, o sexo da orgia ocultista etc.). Essa tensão acompanhará o próprio espectador que, iludido pelo marketing promocional do filme na época que sugeria cenas altamente eróticas do casal protagonista, chegará ao anticlímax final onde a própria Alice responde para Bill na última linha de diálogo: “Precisamos fazer algo urgentemente... trepar!”.


Bill é um médico que atende privadamente membros de uma rica e poderosa elite. Ele é uma espécie de sonâmbulo, que vive uma rotina matrimonial cujo ritmo é marcado pelos atendimentos no seu consultório e, vez ou outra, fumar maconha antes de transar ou dormir. Tudo muda quando sua esposa Alice admite que teve fantasias sexuais com um homem estranho. Bill, então, torna-se obcecado com a ideia de ter um encontro sexual fora do seu casamento. Isso o fará partir em uma jornada pela madrugada com encontros nunca concretizados com a filha de um paciente morto e uma prostituta. Mas quando ele visita uma boate onde encontra um amigo de faculdade, o pianista Nick Nightgale, através dele conhecerá uma estranha sociedade secreta praticante de sexo ocultista ritual. Logo descobrirá uma vasta rede de poder e influencia bem acima dele, e achará que sua vida e a da sua família correm perigo.


Essa interface entre essas duas dimensões do filme (as fantasias de Alice e a interdição do desejo de Bill pela poderosa elite ocultista) será feita por meio de uma grande recorrência de simbolismo criada por Kubrick que vamos, sucintamente, analisar alguns deles.

Alice e os Espelhos

Tal como o personagem Alice de Lewis Carroll que entediada numa tarde quente de verão vê um estranho coelho para correr atrás dele e entrar para um estranho mundo, Alice de Kubrick vive o tédio da rotina conjugal. Até que ela, durante uma bad trip com um cigarro de maconha, revela para o marido em uma pequena discussão suas fantasias sexuais com um homem estranho, um oficial da Marinha.

Curioso é que Kubrick opera uma inversão na alusão a Alice de Lewis Carroll: enquanto no conto clássico a terra de Wonderland é o mundo invertido em relação à realidade, em De Olhos Bem Fechados Alice vê nos espelhos quem realmente ela é e como os papéis sociais nos invertem em relação ao nosso verdadeiro ser. Os espelhos são recorrentes no filme, para começar no próprio pôster promocional: enquanto beija Bill, Alice se distancia da cena e olha para ela mesma no espelho.

Bill: o Viajante

Kubrick constrói o personagem de Tom Cruise a partir do arquétipo contemporâneo do Viajante. Em outra oportunidade discutíamos como a cinematografia contemporânea vem recorrentemente explorando três tipos de personagens que seriam as três formas de construção da subjetividade pós-moderna: o Detetive, o Viajante e o Estrangeiro. 

Como todo Viajante, Bill é bem estabelecido e bem sucedido profissionalmente. O próprio nome faz uma alusão à expressão para a nota de dólar (“dólar bill”). É recorrente no filme cenas em que Bill puxa notas de dólares da sua carteira para pagar a prostituta; para também pagar um valor acima do estabelecido para o aluguel da fantasia, para custear pelo incômodo de fazer a loja abrir no meio da madrugada; rasga ao meio uma nota de 100 dólares para entregar ao taxista uma parte, sob a condição de que ele fique a sua espera para, então, receber a outra metade.

Mas a confissão das fantasias eróticas de Alice obriga Bill a abandonar a sua zona de conforto da rotina e apatia para ser jogado em uma jornada que o renovará. Ele deverá ir até o Inferno e voltar.

Percebe-se durante a narrativa que Bill é um médico solicito e que atende a domicílio pessoas poderosas demais para irem a hospitais como fossem pacientes comuns. Ele testemunha a intimidade e é confidente das mazelas privadas dessa elite. Percebe-se seu fascínio e ambição em também participar desses símbolos de prestígio, o que demonstra a forma como ostensivamente quer demonstrar poder mostrado a todos sua identificação de médico e distribuindo “dólar bills”. A “viagem” descendente ao submundo da elite com misteriosas motivações ocultistas além da sua compreensão, é a peça-chave para a renovação íntima do protagonista.

O Arco-Íris e os enfeites natalinos

Arco-íris estão por toda parte, do começo ao fim do filme. Seja na própria representação icônica do arco-íris do luminoso da loja de aluguel de fantasias, na linha de diálogo das duas modelos que flertam com Bill, na festa na casa de Victor Ziegler, onde elas falam que querem levá-lo “ao fim do arco íris”, ou nas cores dos enfeites natalinos que preenchem todos os ambientes.

A obsessão de Kubrick por esse simbolismo do arco-íris era tão grande que nas primeiras versões do roteiro do filme, a senha para entrada no evento da sociedade secreta ocultista era “Fidelio Rainbow”. Na versão final ficou apenas “Fidelio”. Por que essa fixação de Kubrick pelo arco-íris?

Kubrick recusou usar as luzes do estúdio (Pinewood Studios de Londres), situação parecida com as captações de imagens do filme Barry Lyndon (1975), onde filmou sob luzes de velas para recriar a luz das pinturas do século XVIII. Em De Olhos Bem Fechados Kubrick aproveitou as luzes das árvores de Natal e luminosos como o arco-íris da loja de fantasias. Por isso, as cores do arco-íris dominam os sets, dando à fotografia uma estranha atmosfera de sonho e irrealismo. Processos técnicos (push processing) ajudaram a intensificar mais as cores no resultado final.

A função simbólica universal do arco-íris é a mediação e o caminho entre a terra e o céu, entre o Outro Mundo e o nosso. Em De Olhos Bem Fechados há, portanto, dois mundos: o mundo do arco-íris e das multicoloridas luzes natalinas e o Outro Mundo, onde o “arco-íris termina” – onde a elite se reúne e pratica seus rituais. O contraste entre os dois mundos vai dar uma sensação quase intransponível entre eles.

Na festa na residência de Victor Ziegler, quando as modelos perguntam a Bill se ele gostaria de ir “ao final do arco-íris” com elas, provavelmente se referiam ao ritual que as elites iriam realizar após aquela festa.

No fim do arco-íris, a elite oculta

O local escolhido por Kubrick para filmar o estranho ritual das elites é bem representativo: Mentmore Towers, construído no século XIX como uma casa de campo por membros da elite mais poderosa do mundo: os Rothschilds. Já foi documentado que os Rothschilds realmente participaram de eventos mascarados muito semelhantes ao mostrado em De Olhos Bem Fechados – veja abaixo a foto de uma festa de 1972 dada por Marie-Hélène de Rothschild.

Segundo consta, nessa festa em particular os convites foram impressos com o texto de trás-para-frente. Coincidentemente, a música que ouvimos na sequência do ritual é Backwards Priest da divina liturgia da Igreja Ortodoxa Romena, executada no sentido inverso. A inversão ou reversão de objetos sagrados são típicas da magia negra e rituais satânicos. Uma liturgia cristã executada de forma invertida antes da orgia generalizada que virá em seguida é a forma mais acabada de profanação em ritual de magia negra.

As cenas no interior da orgia foram tomadas em Elveden Hall, uma casa privada no Reino Unido, projetada para parecer um templo indiano. Quando os “festejos” começam uma música hindu chamada Migração toca ao fundo contribuindo para uma peculiar atmosfera oriental. Essa atmosfera hindu combinada com as cenas lascivas testemunhadas por Bill aponta para o simbolismo mais oculto do filme: a Yôga tântrica e seu derivado ocultista ocidental, a magia sexual importada pelo ocultista britânico Aleister Crowley e que está no centro do ensinamento de várias sociedades secretas.

Os conceitos tântricos foram incorporados em duas importantes sociedades ocultistas: o A...A e a OTO (Ordo Templi Orientis), sendo que essa é ainda extremamente influente nos círculos da elite atinge os mais altos níveis da política, negócios e até mesmo da indústria do entretenimento. 

“Se eu dissesse os nomes daquelas pessoas, você não dormiria essa noite”, reponde Victor Ziegler a Bill sobre quem eram as pessoas que estavam naquela orgia ocultista. Embora Kubrick não tenha dado os nomes, há indícios e simbolismos por todo o filme sobre que tipo de sociedade ele estava se referindo. Talvez mais importante, por trás daquelas máscaras venezianas, Kubrick estava nos dizendo que embora não saibamos os nomes de seus membros, essas sociedades fechadas ainda existem e permanecem mais poderosas do que nunca. 

Por: Wilson Roberto Vieira Ferreira


Ficha Técnica

Titulo original: Eyes Wide Shut 
Diretor:Stanley Kubrick
Roteiro: Stanley Kubrick e Frederic Raphael baseado em “Dream Story” de Arthur Schnitzler
Elenco:Tom Cruise, Nicole Kidman, Todd Field, Sydney Pollack
Produção:Stanley Kubrick Productions, Warner Bros., Hobby Films
Ano:1999
País: Reino Unido, EUA
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